terça-feira, 26 de outubro de 2021

som THElúrico

 Era um dia soalheiro. Ela almoçou... e depois colocou a loiça suja na bancada da cozinha. Não lhe apetecia lava-la.
Estava cansada... mas não era um cansaço do corpo, era uma sombra de prostração que se fixava nos ombros e pesava por todo o corpo.
Movimentava o corpo com lentidão e pesar...
Queria dormir um pouco...Deitou-se.
Pareceu-lhe que o sono chegava. Nesse instante de entorpecimento teve a seguinte reflexão "O sono é um arrependimento da morte"
Agora os olhos se fixavam no tecto branco e no candeeiro igualmente branco e redondo, daqueles que são feitos em papel.Tinha a certeza de que não morrera pois mesmo em estado de entorpecimento conseguia ouvir o zumbir das moscas que volteavam em torno de si, do som dos pássaros no lado de fora da janela...
O tecto branco, o candeeiro branco, o rodapé branco, o cheiro dos lençóis brancos... muito peso no corpo, muito peso nas pálpebras.
Ouviu bater à porta. Levantar-se foi difícil. Espreitou pelo olho da porta.
Era Thelema. Há muito tempo que não se viam...
Abriu a porta. A Thelema entrou e nem se sentou...nem uma saudação, e apenas disse "Os teus pensamentos são Demónios determinantes de ti".
Voltou as costas e saiu sem dizer mais nada.
Ela fechou a porta. Ficou pensativa.
Terá sido um episódio da sua mente? Ainda estaria a sonhar, deitada de baixo do tecto branco do seu quarto?
Escutou vozes; ao inicio eram como sussurros, depois alto. Muitas vozes ressoavam em casa.
Tapou os ouvidos com as mãos. Não paravam de se ouvir vozes e mais vozes. Algumas proferiam palavras, outra pareciam uma infeliz junção de uivo animal com grito humano.
Queria voltar a dormir. Foi com lentidão que conseguiu chegar até ao seu quarto. Apesar de estar perturbada pelas vozes sentia o seu corpo mais leve.
Foi ao chegar ao quarto que conseguiu acidentalmente ver o seu reflexo no espelho que estava junto à janela.
Nos braços, largas braceletes de ouro e fogo ornamentavam os pulsos.
Das costas sustentavam-se um par de asas enormes de cisne.
O seu rosto era perfeita junção das faces de uma águia, de um leão e de um touro. As três faces se revelavam como as três cabeças de Cérbero.
8 olhos se moviam independentes e podiam ver tudo ao seu redor: o tecto branco e quem vivia acima dele; as paredes brancas e os que estavam do outro lado dela. Viam dentro e viam fora.
Um grande olho estava acima da sua cabeça e olhava para o espelho pelo qual enxergava o seu reflexo. 9.
Deitou-se na cama aceitando as vozes. Podia ouvi-las, eram cada vez mais. Ruídos telúricos.
A sintonia dos pensamentos verdadeiros que gerou o Caus naquela morada mas viver como queremos é o atingir do Objetivo terreno.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Dia dos mortos

Lucid Dreams

Queria estar presente no cemitério neste dia de finados para visitar os meus avós. Não pude. Estava confinada à cama por causa da maldita doença que me imobilizou a perna, mas acreditei que mesmo não estando presente fisicamente o meu espírito estaria e isso era o suficiente para me trazer alguma paz.

Consegui visitar o cemitério dia 2! Afinal sempre consegui comparecer e para minha sorte o dia ia ser de bom tempo.
Cheguei ao portão da entrada, muitas senhoras estavam sentadas em cima de caixas de madeira, encostadas aos muros. Vendiam flores entre berros e piscadas de olhos encadeados pelo sol. O sol que fazia os aventais pretos e de bolsos gordos reflectirem o brilho do poliéster.
O cheiro dos baldes de água onde estavam as flores era nauseabundo, parecendo uma mistura de lodo com comida podre.
Comprei um ramo de crisântemos brancos a uma senhora gorda e desdentada que por simpatia me fez um desconto. Dizem que os crisântemos são as flores dos mortos e o branco a cor da pureza. Então, era a escolha perfeita.
Segui pelo portão e atravessei o corredor que se encontrava em frente, esburacado e irregular. Pensei logo que se caísse ali não me conseguiria levantar sozinha por causa da perna doente. Felizmente não tropecei.
Os jazigos que ladeavam o corredor estavam bem preservados. Todos tinham a porta aberta. Julguei que se devesse ao facto de ser dia dos mortos e como lógico, dia de visita e limpeza por parte dos familiares.
Não era pois de admirar que os cemitérios estivessem cheios neste dia mas nunca tinha visto tanta gente presente. Todas as campas tinham gente a seu lado. É bonito que se relembre os nossos ente-queridos indo ao cemitério e zelando pelo lugar onde repousam, deu-me uma certa admiração por ver todas aquelas pessoas ali.
Caminhei com mais agilidade em direcção ao túmulo do meus avós. O meu joelho esquerdo soltou uma dor lancinante e tive de forçar o pé direito ainda com mais afinco no chão para compensar a inutilidade da perna esquerda o que fazia com que o joelho direito (também em estado miserável) rangesse como se fosse "o portão de uma quinta" - palavras da minha mãe.
Ia a meio do caminho que ladeia o talhão onde estavam enterrados os meus avós e reparo que alguém estava junto ao seu túmulo.
Serão outros familiares?- pensei.
Aproximei-me cada vez mais.
Vi então,deitados em cima da pedra de mármore fria, lado a lado, os meus avós.
Estavam tal e qual aquando do seu enterro. Estavam inclusive com a mesma roupa. Afinal foram eles que vi quando ia a passar perto do talhão.
Senti uma alegria imensa. Como é possível ver quem não se encontra mais entre nós? Poder falar com eles.
Falei com os dois, sim, falei. Disseram-me que estavam bem e que agradeciam todo o carinho que tive para com eles tendo ido nesse dia visitá-los.
Queria abraçá-los mas não me o permitiram.
Olhei em volta e vi, todos os mortos estavam ali, fora das tumbas, aguardando a visita daqueles que em vida amaram. O cemitério estava cheio... de mortos.
Fechei os olhos e derramei lágrimas de compaixão.
Ouvi o som dos pássaros a cantar alegres composições e quando abri os olhos novamente: uma grande mancha quadrada, branca da cor da baunilha e umas sombras a bailar dando tons de café à baunilha.
O som dos pássaros cada vez mais nítido.
De um lado estava uma mesa, com um candeeiro apagado  e do outro uma pequena janela com cortinas que balançavam com o vento e faziam uma sobra no tecto branco... de um branco baunilha.

domingo, 27 de janeiro de 2019

Incompreensão

Lucid Dreams
Ele era o amor da minha vida, eu sentia-o. Todos os momentos que tínhamos eram para estarmos juntos.
Um dia quando todos na aldeia festejavam o dia de São Pilatos decidimos dar um passeio pela floresta.
Nesse dia foi posto um ser dentro de mim. Eu sentia todos os dias o pequeno ser dançando no ventre.
Apesar de feliz vivia muito amargurada por ter sido votada ao desprezo de todos os que me rodeavam.
O dia em que o meu filho nasceu foi o mais feliz da minha vida.
O meu filho nasceu um homem, era alto, corpo magro e cabeça de veado com duas grandes armações.
Quando as pessoas o viram chamaram-lhe monstro e choraram de horror.
Eu vejo o mais perfeito dos meninos na minha frente.
Os aldeões mais vigorosos foram chamados e agarraram no meu menino e cravaram-lhe na testa a cruz de Cristo, retirada em fogo da  lareira.
Nem todas as chagas de Jesus doeram tanto como a dor da impressão daquela cruz. Ele era filho de Deus. Tal como Jesus não mereceu compaixão.
Levaram-no para a praça da aldeia, ataram-no a um pelouro e incendiaram o seu corpo.
-Não.
Chorei...  Era o meu filho.

Ermitão

Lucid Dreams
Depois de andar mais de duas horas por um caminho poeirento de terra amarela parei. Olhei em volta. Só mato seco. Ao fundo estava um monte. A caverna do ermitão.
Subi a pequena colina. 
O que esperar: um conselho, uma rejeição, um comentário jocoso.
Sempre a mesma ansiedade, dor de barriga, cabeça zonza. Medo de ser magoada.
Da entrada da caverna vi a silhueta do ermitão. Estava sentado de frente para a parede.
Aproximei-me. Pedi conselhos.
- Que tens a me dizer?
Ele levantou-se. Tinha uma túnica com capuz castanha e muito gasta.
- Sempre que falares com alguém, olha-o nos olhos. Olha-me nos olhos.
Virou-se e mostrou o rosto.
No seu rosto estavam duas bolas brancas no lugar das órbitas.
Fugi.
Corri muito.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Pomba

Lucid Dreams
Nas águas-furtadas de um prédio na rua Coelho da Rocha eu escrevia os últimos parágrafos do  meu livro. Tudo estava a correr bem, a editora aceitou fazer a publicação e ainda me sobravam algumas semanas para a data de entrega do manuscrito.
Olhei pela janela; chovia.
Eu gostava de escutar o barulho da chuva a cair no telhado e a bater no vidro.
A minha secretária ficava em frente da janela e ao lado da pequena cama. O tecto era em rebaixo. Do outro lado da secretária estava o fogão e o mini-bar.
A minha casa só tinha uma divisão e um pequeno anexo que era o WC.

Escrevia e olhava a chuva pela janela.
De repente fica escuro!
Vi-me lá em baixo, à secretária, cabeça tombada em cima da folha de papel onde escrevia.
Das minhas costas abriu-se um buraco que emanou luz, fez-se movimento dentro do orifício, foi uma pomba branca que saiu e voou para a janela.
Bateu insistente no vidro. Desci e abri a janela.

Sinto-me leve.
A pomba voa para longe, dá a volta ao mundo, eu consigo ver  a partir de do meu quartinho nas águas-furtadas.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

2

Lucid Dreams
Num grande terreno à beira-mar estavam dois palacetes construídos há mais de 100 anos. Eram idênticos... mas o do lado esquerdo era rosa pálido com mansarda e cercas brancas, portas eram brancas, janelas com portadas verdes e vários vasos com plantas a circundar a porta da entrada principal; O do lado direito estava em ruínas, as portas rebentadas e cheias de ripas tortas e janelas quebradas.
A casa da esquerda é onde vivo. Na da direita é onde ela vivia.
 Ela é um fantasma. É eu! É eu! É eu!
Cabelos longos, escuros, corpo putrefacto e azul, olhos descarnados, roupa podre e rota.
Eu tinha medo dela. 
A casa dela estava ligada à minha por uma ponte de betão muito estreita. Odiava quando ela atravessava a ponte:
Eu tinha muito medo. 
Todo o ambiente cheirava a podridão e o chão pingava sangue preto e coagulado enquanto ela dava passos cambaleantes. 
Não aguentava mais viver assim.
Um dia , peguei-lhe no braço chagoso e arrastei-a para o mar. 
Afogou-se. Sabia que ela também tinha ficado  aliviada por deixar de viver.
Perdoa-me mas fui capaz e sinto-me orgulhosa.

Dia de sol

Lucid Dreams
Caminhava a passos rápidos e balançados. Descia a rua do Sol-ao-Rato. Lembro-me que tinha pressa e estava muito confiante que quando lá chegasse iria ter uma recepção amigável.
Foi num dia solarengo, perto da hora do almoço. Os raios de sol eram tão brilhantes que até reflectiam a brancura das pedras da calçada.
Era um dia de felicidade, sentia. 
Quando cheguei ao Largo do Rato parei e olhei em volta. 

Quem sou?
Para onde vou?
Não me lembro de nada. Não sei quem sou, que sítio é aquele. Sim, eu estava a andar para ir a... Não sei, não me lembro.
O que é que se passa?
Senti medo. Muito medo. 
Estou sozinha. Deus, tu deixaste-me sozinha, Deus! Morre, abandonaste-me e mataste a minha mãe. Querias-me sozinha.
Não existe Deus!