sexta-feira, 5 de abril de 2019

Dia dos mortos

Lucid Dreams

Queria estar presente no cemitério neste dia de finados para visitar os meus avós. Não pude. Estava confinada à cama por causa da maldita doença que me imobilizou a perna, mas acreditei que mesmo não estando presente fisicamente o meu espírito estaria e isso era o suficiente para me trazer alguma paz.

Consegui visitar o cemitério dia 2! Afinal sempre consegui comparecer e para minha sorte o dia ia ser de bom tempo.
Cheguei ao portão da entrada, muitas senhoras estavam sentadas em cima de caixas de madeira, encostadas aos muros. Vendiam flores entre berros e piscadas de olhos encadeados pelo sol. O sol que fazia os aventais pretos e de bolsos gordos reflectirem o brilho do poliéster.
O cheiro dos baldes de água onde estavam as flores era nauseabundo, parecendo uma mistura de lodo com comida podre.
Comprei um ramo de crisântemos brancos a uma senhora gorda e desdentada que por simpatia me fez um desconto. Dizem que os crisântemos são as flores dos mortos e o branco a cor da pureza. Então, era a escolha perfeita.
Segui pelo portão e atravessei o corredor que se encontrava em frente, esburacado e irregular. Pensei logo que se caísse ali não me conseguiria levantar sozinha por causa da perna doente. Felizmente não tropecei.
Os jazigos que ladeavam o corredor estavam bem preservados. Todos tinham a porta aberta. Julguei que se devesse ao facto de ser dia dos mortos e como lógico, dia de visita e limpeza por parte dos familiares.
Não era pois de admirar que os cemitérios estivessem cheios neste dia mas nunca tinha visto tanta gente presente. Todas as campas tinham gente a seu lado. É bonito que se relembre os nossos ente-queridos indo ao cemitério e zelando pelo lugar onde repousam, deu-me uma certa admiração por ver todas aquelas pessoas ali.
Caminhei com mais agilidade em direcção ao túmulo do meus avós. O meu joelho esquerdo soltou uma dor lancinante e tive de forçar o pé direito ainda com mais afinco no chão para compensar a inutilidade da perna esquerda o que fazia com que o joelho direito (também em estado miserável) rangesse como se fosse "o portão de uma quinta" - palavras da minha mãe.
Ia a meio do caminho que ladeia o talhão onde estavam enterrados os meus avós e reparo que alguém estava junto ao seu túmulo.
Serão outros familiares?- pensei.
Aproximei-me cada vez mais.
Vi então,deitados em cima da pedra de mármore fria, lado a lado, os meus avós.
Estavam tal e qual aquando do seu enterro. Estavam inclusive com a mesma roupa. Afinal foram eles que vi quando ia a passar perto do talhão.
Senti uma alegria imensa. Como é possível ver quem não se encontra mais entre nós? Poder falar com eles.
Falei com os dois, sim, falei. Disseram-me que estavam bem e que agradeciam todo o carinho que tive para com eles tendo ido nesse dia visitá-los.
Queria abraçá-los mas não me o permitiram.
Olhei em volta e vi, todos os mortos estavam ali, fora das tumbas, aguardando a visita daqueles que em vida amaram. O cemitério estava cheio... de mortos.
Fechei os olhos e derramei lágrimas de compaixão.
Ouvi o som dos pássaros a cantar alegres composições e quando abri os olhos novamente: uma grande mancha quadrada, branca da cor da baunilha e umas sombras a bailar dando tons de café à baunilha.
O som dos pássaros cada vez mais nítido.
De um lado estava uma mesa, com um candeeiro apagado  e do outro uma pequena janela com cortinas que balançavam com o vento e faziam uma sobra no tecto branco... de um branco baunilha.